segunda-feira, 4 de junho de 2012

Anjos & Demônios no Tarot - A Hierarquia Angélica no Simbolismo do Tarot

O "paradis perdus 9",
de Gustave Doré.
Sempre me intrigou as imagens angélicas no simbolismo do tarot. Sabemos sobre os anjos que são eles os mensageiros de Deus (angelus, do latim mensageiro). No tarot os anjos simbolizam a ascensão para um novo estágio de consciência. Eles aparecem nas cartas de A Temperança, e de O Julgamento e também na figura do anjo decaído, Lúcifer. As asas são tradicionalmente o símbolo da liberdade e da elevação. Na iconoclastia cristã os anjos têm asas que os transportam do mundo espiritual e divino para o mundo terreno dos homens, o que por outro lado pode ser considerado como a possibilidade da união do sagrado com o profano dentro da psique. Ou da besta instintiva com a consciência espiritual intrínseca na natureza humana. 
Os três anjos mais conhecidos nas três maiores religiões do mundo (cristianismo, islamismo e judaísmo) são Miguel, cujo nome quer dizer aquele que é como Deus, ou como a pergunta, quem é como Deus? Gabriel, homem forte de Deus, ou apenas homem de Deus e Rafael (Raphael), a cura de Deus, ou curado por Deus.




Os Arcanjos Rafael, Gabriel e Miguel.
À esq. “Rafael” de Bartolome Roman. Ao centro Gabriel em “Anunciação”, de Paolo de Matteis. À dir. “Miguel” de Guido Reni.
Rafael

Tudo começa com o arcano XIII A Morte (as figuras angélicas só aparecem depois deste arcano), e o interessante é que o próprio arcanjo Gabriel também era conhecido como o anjo da morte! Esse arcano representa um grande ponto de mutação, onde uma profunda transformação ocorreu e uma nova visão da vida nasce, como numa separação, a perda de um emprego ou a cura de uma doença muito grave onde a própria existência do indivíduo foi ameaçada! E não faltam exemplos de pessoas que diante do imponderável mudaram hábitos e direcionamentos de vida. Essa nova percepção da vida está representada no arcano de A Temperança como uma cura física ou interna que muda o aspecto interior e exterior, ou a realidade de uma situação. Esta ampliação da visão interior é representada no tarot de Marselha como a flor de cinco pétalas que desabrocha no ponto entre as sobrancelhas da figura angélica (o sexto chakra, ou terceira visão). Os místicos verão nisso uma inspiração divina, os racionalistas apoiados na psicologia talvez vejam uma ampliação da consciência provocada pura e simplesmente pela pressão extrema. Eu particularmente acho que as duas são a mesma coisa vista por ângulos diferentes, moldadas ao gosto da abertura interior de quem as lê.
Tobias e o Arcanjo Rafael.
O décimo quarto arcano do tarot me parece mais do que conectado com a figura do arcanjo Rafael, pois a cura proposta por ele não é apenas física, mas também interna e espiritual. Daí esse arcano ser sempre associado a tratamentos de saúde, quer sejam eles alternativos ou convencionais. As ânforas laçando água uma sobre a outra são a expressão de uma mistura ou composto que pretende chegar a uma síntese curativa. O número deste arcano é 14 cuja soma 1+4 = 5, o número da quintessência mística, o elemento que sintetiza a alma humana. Esse número também corresponde ao arcano de O Hierofante que simboliza, entre outras coisas, os médicos, curadores e terapeutas de todo tipo. Na bíblia Rafael aparece no Antigo Testamento, no Livro de Tobias ele ordena que Tobias domine um peixe que tentou devorá-lo para retirar-lhe o fel, com o qual o próprio Rafael cura a cegueira do pai de Tobias.
A transição, da Morte para A Temperança,
as rupturas dramáticas ampliando a percepção da vida.

O tempero proposto pelo título desta carta tem muito menos a ver com as qualidades de parcimônia e prudência pretendida pela doutrina católica e mais com a ativação da personalidade com um novo sentido interior de existência ou com elementos que lhe faltam. Assim uma personalidade suave e muito frágil fica mais efetiva se lhe forem acrescidas as qualidades do foco e do rigor. Aleister Crowley e Frieda Harris representaram isso muito bem no arcano Arte (nome que deram ao arcano de A Temperança) onde uma cabeça é composta por duas faces inteiras unidas! Nesse caso a união das partes ficou maior que o todo. Por esse princípio uma personalidade quando ativada, ou temperada, com um novo significado, propósito ou qualidades que estruturem melhor sua expressão, se torna maior do que a sua antiga forma. A cura apresentada pelo arcanjo Rafael é uma consciência nova, mais ampla e cheia de novas perspectivas! O que coaduna muito bem com a ideia de tempo e demora que também acompanha o simbolismo deste arcano, afinal tudo que acabamos de falar faz parte de um longo processo, tanto interno quanto externo, que poderá ser precedido de algum tipo de sofrimento, como os citados no início deste artigo.

O Diabo

Ou Lúcifer, também aparece no tarot. Depois de o arcano de A Temperança, surge o arcano XV de O Diabo que na sequência representa o perigo de a nova ampliação da consciência esbarrar em conceitos puramente materiais. É bem conhecida a comparação que alguns tarólogos tecem entre as cartas de O Hierofante e o Diabo. No tarot de Marselha, ambos fazem gestos iniciáticos! O primeiro parece alertar para o fato de que há muito mais na vida para além do que vemos. O outro tenta nos convencer que tudo está no mundo visível e que para fora dos cinco sentidos nada mais há a ser percebido! Podemos dizer com isso que vivemos numa era onde o Diabo assumiu o controle! Mesmo pessoas que se dizem muito religiosas, como nos cultos pentecostais, enumeram sempre aquisições materiais como resultado de sua fé. “Com Jesus minha vida financeira se encaminhou” ou “Fiquei curada! Já tinha até perdido as esperanças!” ou ainda “Depois que entrei para a igreja arranjei um emprego e larguei o vício!” e assim por diante!... Quase nunca dizem uma palavra sobre o que apreenderam da vida para além do seu significado físico. Nada houve de realmente místico nessas conquistas. A experiência mística alcança sempre níveis de compreensão transpessoais e por isso mesmo universais. Portanto, que fique claro de que o materialismo não é coisa apenas de ateus, mas também dos que desconhecem o real sentido da espiritualidade. O arcano de O Diabo personifica nossos anseios materiais, paixões físicas, ambições, inveja, ânsia por controle e poder. Tudo o que excita nossa fera interior, cheia de fantasias vergonhosas e segredos sujos que a maioria faz de tudo para manter longe de olhos alheios. A culpa por cultivar essa fera é aliviada quando o olhar se volta para fora e o senso comum mira o diferente taxando-o de “anormal”. O manto da normalidade aplaca a vergonha do demônio pessoal que jaz nas profundezas escuras da consciência.
Lúcifer de Franz von Stuck, 
habitante das trevas.


Na bíblia diz-se que Lúcifer é um anjo caído, que foi expulso dos céus pelo arcanjo guerreiro Miguel e por ele arremessado às profundezas da terra onde passou a viver e a arder em sua própria fúria. Lá Lúcifer, cujo nome quer dizer portador da luz vira Satã, que significa adversário, ou simplesmente o Diabo, que significa caluniador. As profundezas da terra são as profundezas da natureza e do corpo, assim sendo tudo o que se referisse ao mundo natural ou dos instintos transforma-se em demoníaco. Só para esclarecer, a palavra demônio foi mais tarde adicionada aos nomes do Diabo, mas é de origem grega. Deimos era um dos filhos de Ares, o deus da guerra, e a tradução do seu nome é medo. Muito apropriado! Satã ou Lúcifer começa então a ser visto como o grande adversário da humanidade instigando nela todo o calor de seus instintos mais primitivos, um agente eterno do mal que age nas sombras, na escuridão, muito longe de toda a luz da qual ele foi, um dia, o grande portador. O medo da escuridão é um dos medos mais atávicos na humanidade. Uma antiga placa em terracota encontrada na Suméria (4.000 e 3.000 A/C) mostra a figura de Lilitu, o terrível espírito feminino da noite. No Talmud hebreu ela aparece como Lilith, a primeira mulher de Adão, que ao não aceitar o domínio e subjugação ao homem como uma forma de obediência a Deus cai em desgraça, se refugia nas sombras e começa então a parir 100 demônios por dia. Lilith vira, a partir disso, a mãe de todo o mal.
Lilitu, à esquerda, o terrível espírito da noite (placa sumeriana em terracota). O Diabo, à direita, no tarot de Marselha... Mera semelhança...?

Há uma incrível semelhança entre a milenar figura na placa de terracota e o arcano de O Diabo, como ele aprece no tarot de Marselha. Assim, nos primórdios das religiões monoteístas e organizadas, o mal passa a ser associado à natureza, aos instintos, sobretudo os sexuais, as mulheres e ao feminino como um todo! Mulheres são vistas com desconfiança, e os tipos afeminados de homens passam a ser tidos como uma ameaça ao mundo masculino. Vê-se nisso as raízes do machismo e da homofobia na mesma origem.

Miguel e Gabriel

Miguel e Gabriel se revezam na regência de um dos últimos arcanos do tarot O Julgamento, o vigésimo dos arcanos maiores. Afinal quem é o anjo que aparece tocando as trombetas sobre as catacumbas abertas anunciando a chegada de um novo tempo? Miguel é tanto o guerreiro que baniu o mal do reino dos céus, como o grande julgador das almas, que segundo as escrituras bíblicas, virá no dia do juízo final convocando as almas de todos os que já viveram sobre a terra para o grande julgamento presidido por Jesus Cristo renascido. Nesse dia, segundo essas mesmas escrituras, todos os mortos voltarão à vida. 
Se entendermos o juízo final metaforicamente, ele é uma conscientização profunda e transformadora, que pode se dar tanto a nível global quando individual. Olhando por esse prisma parece mesmo que Miguel se enquadra bem no simbolismo de O Julgamento. Esse arcano simboliza a reavaliação da vida diante de um chamado interno, algo como uma convocação íntima que traz questionamentos profundos tipo: “Por que isso sempre acontece comigo?” ou “Como pude viver assim até hoje?”, “Como as coisas chegaram a esse ponto?”. Esse momento crítico pode levar a consciência a uma súbita compreensão das vivências do passado e dos padrões que moldam o que conhecemos como o futuro, dentro do momento presente. Esse evento é análogo ao samadhi dos indianos ou ao satori dos japoneses, que podem ser traduzidos como a iluminação. 
Essa transição reveladora, no entanto, guarda semelhanças com o simbolismo do arcanjo Gabriel. Ele aparece em momentos cruciais das histórias sagradas para mudar o rumo dos acontecimentos, tanto no cristianismo como no islamismo. É Gabriel quem avisa a Maria que ela dará a luz ao messias, e depois é ele quem a avisa do risco de vida que o menino corre diante do assassinato de crianças ordenado por Herodes, rei da Judeia, e ordena que Maria e José fujam. Foi Também o arcanjo Gabriel quem ordenou a Maomé que escrevesse o alcorão, o livro sagrado do islã. 
Arcanjo Miguel, o julgador
das almas.
Muitos de nós, ou todos nós, passamos por grandes questionamentos onde o passado e o presente se confrontam numa ânsia por dar significação a existência. Temos de admitir, porém, que para a maioria das pessoas isso passa, é varrido para debaixo do tapete da rotina de cada um sem com que a consciência ou a direção da vida mudem. Ao contrário do que acontece no arcano XIV A Temperança, onde se obtém um vislumbre do novo caminho a seguir, em O Julgamento fica claro onde está o problema dentro do contexto de uma vida, e ele é tanto reconhecível quanto inegável. Na Temperança há um olhar para diante cheio de perspectivas. No Julgamento há um olhar para trás cheio de intenções de correção e ou compreensão. O que não significa que eles ocorram, pois que geralmente são difíceis de executar, e muito menos que levarão a uma verdadeira iluminação, já que isso é para as poucas almas que amadureceram no processo de suas muitas vidas! Quando ocorrem, tanto a correção quanto a compreensão, então são um atributo do arcanjo Gabriel o grande anunciador, e não do arcanjo Miguel o justiceiro e julgador das almas.

E o Outro Anjo?

Alguns alunos e leitores me cobraram para que eu falasse sobre o outro anjo que aparece no tarot, mais precisamente na carta de O Enamorado, o sexto arcano. O que respondo aos meus inquiridores é de que não se trata de um anjo, mas da figura do deus Greco-romano do amor, Eros. A imagem de Eros sobre casais apaixonados, flechando corações incautos era bem comum na arte popular renascentista. O mais usual era representá-lo como um anjo bebê com asas, pronto a desferir um tiro certeiro no coração de um jovem rapaz... Ah, e quase invariavelmente era um rapaz, pois que os galanteios de amor eram uma premissa masculina. O que podemos dizer mais sobre isso é de que a representação de um infante com asas era uma figura tradicional dos anjos querubins, representados por artistas como Raphael ou Rosso Fiorentino.


Dois querubins lendo, pintura de
Rosso Fiorentino (1494-1540).

Na tradição judaica da Cabala os querubins estavam relacionados com a sephira de Chokmah, a suprema sabedoria. Ora, o que vemos não é justamente um jovem que tem de escolher entre dois caminhos, um justo e outro pecaminoso? Um coerente com seus valores e outro subversivo aos seus modelos internos? E quanta falta faz uma sábia orientação nessas horas, ou mesmo uma “luz” superior que nos oriente! Quantas escolhas que parecem inocentes mostram-se depois desastradas por falta de maturidade ou de ouvir a sabedoria interior? Quantas escolhas aparentemente sem importância no princípio se mostraram um grande erro com o passar do tempo? E não vamos aqui nos deter em avaliar se essa sabedoria vem do nosso inconsciente ou de uma inspiração do Eu Superior, a porção do divino que habita dentro de cada um de nós! A verdade é que a falta de atenção a essa inspiração, ou mesmo a total falta dela, faz toda a diferença entre o sucesso e o fracasso com muito mais frequência do que se possa imaginar.