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O Enforcado e O Mundo, as duas faces de uma mesma moeda. Imagem do Rider-Waite tarot. |
Os alunos me perguntam com frequência sobre a relação do décimo segundo arcano, O Enforcado, e o vigésimo primeiro, O Mundo. Geralmente esse pedido de análise se dá em função de algumas similaridades curiosas em suas simbologias. Os dois arcanos possuem um cruzamento de pernas muito semelhantes, e ambos possuem de forma inversa a representação dos números 1 e 2. O cruzamento de pernas aparece primeiro na sequência dos arcanos maiores em O Imperador. Lá ele mostra um soberano empoderado em seu trono, senhor do mundo manifesto e de sua criação, ele está muito à vontade em sua posição. O Enforcado por sua vez não desfruta de tal conforto. Ele não mais se encaixa no mundo manifesto e, pelo contrário, oferece uma outra perspectiva que nasce desse profundo desconforto.
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O Enforcado, renúncia ou desilusão. Imagem do tarot de Marselha. |
De certa forma ele trai a sua própria natureza, e a natureza das coisas com as quais esteve envolvido, ao não mais se encaixar nelas. *Na Itália o homem pendurado era o símbolo de um traidor expatriado cuja imagem era desenhada e exposta pelas ruas das cidades. Muitas vezes a traição era uma discordância das autoridades (um dos atributos do Imperador) ou política vigentes. A nova perspectiva nasce de um desconforto, e gera outro maior. A inadequação é um fardo pesado, pois a diferença dói e a dificuldade de comunicação a partir desta diferença é enorme. É humano a resistência em entender o que é diferente do usual ou conhecido. No Rider-Waite o arcano de O Enforcado aparece com uma aureola dourada na cabeça, nos lembrando que os ditos iluminados também foram reconhecidos como estranhos, incompreensíveis e, na sua maioria, hostilizados ou martirizados. Na cabala o nome usado para eles é “os deuses sacrificados”, e se encontram na sephira de Tiphareth.
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O Imperador, senhor absoluto do mundo manifesto! Imagem do Thoth tarot. |
Sendo assim a sua nova visão surge de um profundo desapontamento. Na imagem clássica seus bolsos estão abertos sugerindo que o que ele carregava se perdeu, sem com que houvesse nada que ele pudesse fazer! Suas mãos estão para trás, o que tanto pode indicar essa impotência quanto uma renúncia em seguir com determinado comportamento ou status. Na vida comum O Enforcado aparece como um súbito despertar para o imponderável, onde reconhecemos que nada podemos diante de uma determinada situação ou que não cabemos mais nela. Podemos nos sentir excluídos, perdidos e sem direção numa estagnação profunda e sufocante, ou decidir conscientemente entregar o que pensávamos ser nosso lugar, ou direito, à espera de um novo sentido ou direção! O sofrimento será proporcional à nossa capacidade de entender e ressignificar o momento. Sua correspondência astrológica com Netuno é mais do que adequada, este é o planeta que dissolve as formas enrijecidas da percepção, afrouxa as fronteiras entre o concreto e o imaginário, e turva o que chamamos de real para ampliar o seu escopo de possibilidades. Tudo isso, porém, costuma gerar imenso sentimento de confusão e desconexão dentro das qualidades e vivências representadas pela casa astrológica que Netuno ocupa no mapa natal. A sua numeração, 12, seria a representação da consciência (1) sendo dividida, ou exposta ao seu oposto para revelar outra realidade (2). Como o zodíaco representaria com seus doze signos o campo total da jornada evolutiva da humanidade, ampliando o próprio sentido de existir. O mesmo acontece com o mito dos doze trabalhos de Hércules, onde o herói é transformado ao longo da sua trajetória, claro que não sem muito sofrimento no percurso em que ele se eleva da condição humana para se tornar um dos deuses do Olimpo. Sendo assim, o que chamamos de sofrimento seria uma proposta evolutiva para a consciência, e a compreensão da vida e de si mesmo.
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O Mundo, amadurecimento e conclusão. Imagem do tarot de Marselha. |
No arcano de O Mundo o cruzamento de pernas representa a retomada da própria autonomia, e a superação das vivências dolorosas de O Enforcado. A estagnação foi transformada num passo de libertação. Os ciclos de sofrimento e inversão de perspectiva, que antes causavam desconforto e sentimentos como inadequação e não pertencimento, agora são transformados em finalização de ciclos, amadurecimento, realização e de encontro do seu lugar no mundo! A sua correspondência astrológica com o planeta Saturno é igualmente perfeita. Saturno é o planeta da maturidade, sobriedade, sabedoria e, sobretudo, de aprendizado e crescimento com as experiências vividas ao longo do tempo, sem as quais não se adquire nenhuma das qualidades antes citadas. Enquanto Netuno dilui e confunde, ao mesmo tempo em que revela outras verdades e perspectivas, Saturno define, delimita e separa o velho e o novo. Antes da descoberta de Urano, em 1781, este era o planeta regente tanto de Capricórnio, a tradição, quanto de Aquário, a renovação. A dançarina sai da grande mandala cercada dos quatro elementos com os braços soltos e segurando nas mãos uma (ou duas, nos baralhos modernos) vara mágica. O instrumento mágico de O Mago ressurge em suas mãos. A impotência e a renúncia ficaram para trás, a imagem sugere centramento e harmonia, onde a síntese de tudo o que foi vivido alcança seu ápice, máxima realização, excelência! A numeração sugere que a dualidade e a via interior (2) encontram uma síntese, e uma expressão para o mundo (1). O pai divino (1) e a mãe divina (2) finalmente se reencontram – são eles que aparecem nas figuras de O Mago e de A Sacerdotisa no começo da jornada arquetípica dos 22 trunfos. Os sentidos estão todos unificados e o propósito realizado. O final da jornada sugere, porém, outro início. A saída da mandala sugere uma nova jornada num outro nível, mais sublime, e a partir de uma perspectiva mais elevada. De novo a perfeita analogia com Saturno se revela, ele é o senhor da velhice sábia como o resultado de uma vida plenamente vivida. É nesse momento que o arcano de O Louco, que surgiu no começo da sequência dos arcanos maiores como um ignorante em busca da verdade, reaparece como o Louco divino. Aquele que não se encaixa no mundo e não sofre por isso, pois conhece seu propósito e direção interiores, e agora sai pelo mundo a disseminar sua nova visão.
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