quarta-feira, 6 de julho de 2022

Um Breve Ensaio Sobre o Caos

 “Em todo caos há um cosmos, em toda desordem uma ordem secreta.”

C. G. Jung

O Louco, um agente do caos em busca
da manifestação da Luz.

Segundo tradições mitológicas e religiosas o caos é o vazio primordial de onde todas as coisas surgem. Sem forma, ilimitado e indefinido propiciou a criação do todo e o precedeu na manifestação do que conhecemos como realidade. Platão dizia que o caos era o estado desordenado e indiferenciado dos elementos antes da intervenção do demiurgo. Assim o caos é um estado que foge à compreensão da razão linear, o que torna a absorção de sua essência tanto difícil quanto fascinante. A ideia de caos pressupõe a ausência de uma criação ao mesmo tempo que a disposição de todos os elementos para que a criação aconteça. Na imagem arquetípica de O Louco ele é o zero, número que simbolicamente representa o vazio primordial pleno de possibilidades, por isso também muitas vezes referido como o símbolo arquetípico da infância, onde todas as possibilidades humanas jazem latentes e inorganizadas. O Louco mais parece alguém desorientado que não percebe, ou ignora, o cão que rasga a sua calça. Os cães foram um dos primeiros animais domesticados pelo homem, o viajante não cabe mais no lugar ordenado da rotina e dos fatos estabelecidos onde foi “domesticado”. Sua cabeça está totalmente voltada para cima como se estivesse se orientando, ou buscando orientação, em algo superior. Ele é a imagem de alguém que personifica o caos. A versão clássica do tarot de Marselha não deixa claro se O Louco anda de dia ou de noite. Waite desenhou, em sua reinterpretação dos arcanos, o seu Bobo à luz do dia e sob um sol branco! Faz mais sentido pressupor que o andarilho está fazendo seu trajeto à noite, onde parece estar buscando a orientação das estrelas como os antigos peregrinos e navegadores! O que corresponderia muito bem, de modo tanto simbólico quanto poético, com a sua correspondência astrológica de Urano. Este era um deus primordial do qual descendiam todos os deuses que deram mais tarde origem à raça humana. Ele tanto tinha um elemento de caos quanto de criação e renovação, além de ser o deus do céu estrelado que guiava a humanidade pelos caminhos desta vida. O caos, entretanto, não é perene, ele se encaminha quase que fatidicamente para a manifestação de algo, ou da própria realidade! Então neste momento surge a ação do criador. Platão referia-se ao demiurgo como um ser divino que contempla as ideias e as formas, e as organiza de modo a manifestá-las na realidade. Mas tanto as ideias quanto as formas existiam antes do demiurgo. O que o torna diferente do Deus judaico-cristão que cria o todo do nada, ou seja, tira do caos as formas daquilo que chamamos de realidade. A ideia de demiurgo é muito utilizada tanto na tradição filosófica platônica quando gnóstica, e tanto este conceito quanto a do Deus criador cristão não se afasta do arquétipo de um criador/organizador que manifesta a realidade a partir de elementos, formas e ideias desordenadas. A ideia do criador/ordenador aparece muito bem representada na imagem arquetípica de O Imperador.

O Imperador, criador/regulador
do mundo manifesto.

Na simbologia clássica ele é a primeira figura de barba branca, indicando tempo, ancestralidade e origem. Numa linguagem mais atualizada ele seria sistemicamente o pai de todos nós, o que gerou e organizou o mundo em que vivemos, por isso está entronado e coroado. Ele segura o cetro com a cruz encimada sobre a esfera, símbolo do mundo, e com uma das mãos segura o cinto, símbolo tanto da divisão quanto da união dos mundos superior e inferior, do qual O Imperador é o criador/regulador. O que combina muito bem com sua correspondência astrológica de Áries, o signo do impulso da vida para a manifestação e também da liderança pioneira. Seu trono quadrado é o representante dessa matéria que ele criou e regula. Seu número é o 4, que é a cifra da realidade e da concretização. Seu símbolo geométrico sagrado é o quadrado, o divisor do espaço e o estabilizador do mundo. A totalidade é bem representada pelo círculo, porém a sua divisão natural é o 4: são quatro estações, elementos, pontos cardeais, humores... O 4 é o regulador da vida manifesta, daí O Imperador também ser a imagem arquetípica do líder em todas as suas manifestações! Curiosamente a palavra Deus, na maioria dos idiomas, tem quatro letras.

A Morte, a lei da eterna transformação:
nascer/morrer/renascer!

A realidade, porém, está sujeita a transformações e mutações bem como à própria extinção. Tudo o que vive morre. A imortalidade é biologicamente impossível! Mesmo uma árvore que viva milhares de anos um dia morrerá. Tudo vive para um dia morrer e entre o nascer e o morrer todos buscam a sua razão por existir. A vida não se manifesta em vão, somos pulsações da grande fonte da existência para um propósito que contribui para a sua própria manutenção. A figura arquetípica mais impactante desta lei de mutabilidade constante é A Morte. Na representação clássica surge o que não é bem ainda um esqueleto, mas uma figura em estado de putrefação, que passa sua foice de lâmina vermelha por sobre cabeças, mãos e pés decepados (provavelmente amputados por ela mesmo), que se lançam num solo negro. As realizações (mãos) e os caminhos percorridos (pés) assim como todas as honras e ideias consagradas (cabeças coroadas ou não) perderam sua função ou significado, morreram e são devolvidas ao caos primordial, o chão negro aos pés da Morte. O caos muitas vezes é referido como a noite primordial, a escuridão de onde tudo veio. Deste chão negro podemos supor que surgirá a imagem desorientada de O Louco rastreando as estrelas do firmamento para se orientar pela escuridão indistinta do caos, onde tudo recomeçará. Como vimos O Louco/Urano é também o Senhor da renovação! O número da Morte é o 13 a cifra dos perfeitos ciclos lunares. O calendário lunar, se fosse aplicado, teria dias atrológica e numerologicamente regulados em treze meses. Todos os domingos cairiam em dias que somam 1, a cifra correspondente ao Sol, e todas as luas cheias cairiam no 15 de cada mês, por exemplo. Assim a perfeição dos ciclos lunares diz que nada morre antes do tempo, ou que os ciclos de estar e partir são simétricos e conectados a planos superiores de manifestação. Seu correspondente astrológico é Escorpião, o signo tanto da morte quanto da transformação com o objetivo de evoluir a si mesmo. Daí este também ser o signo do ocultismo, e de todos os conhecimentos herméticos, tanto quanto do autoconhecimento. De novo o símbolo da Morte impulsionando a busca pelo conhecimento da vida e de si mesmo para achar seu próprio papel no esquema existencial! Por fim, um fato interessante que os conhecedores ou estudiosos do tarot já devem ter percebido, é de que todos esses símbolos giram em torno do grande poder do número 4! O arcano de O Louco é zero, mas para efeito de cálculos, e em virtude de ser o vigésimo segundo arcano, tem valor aritmético 22, cuja soma é 4. A Morte por sua é 13, que também resulta em 4. E 4 é o número de O Imperador! Então o que podemos entender dessa conexão simbólica, é que tanto o caos inorganizado quanto sua transformação (no sentido de transcender a forma original) fazem parte de uma ordem maior fora do alcance pleno do entendimento humano.