sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Devemos Ler o Tarot para Terceiros?

Os arcanos do Tarot, um mosaico de imagens
que expressam a alma humana em suas vivências

Eis uma questão que acompanha as sessões de Tarot e Cartomancia em geral pelo mundo a fora há pelo menos uns duzentos e cinquenta anos, e não parece ter uma resposta que sirva para todos igualmente até hoje. Há, inclusive, consultores que se especializaram em fazer leituras para filhos, sócios, parentes, vizinhos namorados/as e assim por diante. O que incialmente começa com mães (geralmente idosas) perguntando sobre a vida dos filhos (geralmente adultos) avança para uma verdadeira espionagem da vida alheia através dos arquétipos! Mães de um modo geral consideram um direito seu atropelar a privacidade de sua prole, isso virou tão aceito que nem questionamos mais. Na maioria das vezes achamos engraçadinho, ou meio bobo, e paramos por aí! Isso ocorre porque ainda estamos presos a um conceito que considera que uma vida de propósitos e projetos é impossível na terceira idade. Assim temos uma geração de mortos vivos depois dos 70 que, considerando que não possuem mais uma vida para si, voltam-se para a vida e a realização da sua prole, quando as tem. Pretendo levantar aqui algumas questões para reflexão e melhor compreensão de um tema tão casual, aparentemente, que ignoramos a gravidade de suas consequências em todos os âmbitos possíveis.

A Ética

O primeiro tópico é, com certeza, o mais evidente e obviamente o mais esquecido de todos! Quando o consulente indaga sobre alguém da sua convivência esquece-se na maioria das vezes de que estamos contando a história de alguém que não está presente, não procurou os serviços de consultoria daquele profissional, e está tendo sua intimidade invadida. Acontece também que o próprio consulente pode extrapolar os limites da sua própria privacidade e se revelar sem nenhum tipo de preservação de si mesmo, do profissional que ele procurou e das pessoas de suas relações. Dentro das minhas mais de três décadas de atuação na área de consultoria com linguagens arquetípicas como o Tarot, a Numerologia e a Astrologia tenho ouvido as histórias mais bizarras sobre pessoas que simplesmente mandaram para o espaço toda e qualquer consideração às regras de decência no tratamento dos sentimentos dos outros e dos próprios sentimentos. Uma cliente me contou que um ex namorado consultava uma profissional de tarologia para vigiar suas namoradas, e saber se elas lhe diziam a verdade sobre seus compromissos, pessoais, familiares etc. Até que a referida profissional alegou que ela havia mentido a ele sobre uma certa viagem, o consulente (seu namorado) a confronta com a revelação e ela pede para falar com a taróloga, que não só reafirma tudo o que disse como a chama de mentirosa! E ela não estava mentindo...  Num outro caso uma pessoa pergunta se o marido estava sendo fiel a ela, as cartas mostraram que ele estava muito atraído por uma mulher bem mais jovem que ele. A mulher leva ao marido a revelação das cartas, ao que o companheiro não só nega tudo como a faz se sentir uma completa idiota por acreditar nessas coisas, além de ameaçar ir até o cartomante que a atendeu numa discussão dramática. Tempos mais tarde ele a abandona por uma mulher dezenove mais jovem. Para consultores e consulentes vale lembrar que a confidencialidade de uma sessão oracular deve ser recíproca. Ética é um conjunto de regras que trata de estabelecer boa convivência entre as pessoas no dia a dia. E, num sentido mais simplificado, trata de reciprocidade nas atitudes. Seja respeitoso com as prioridades e regras dos outros como gostaria que respeitassem as suas. Mantenha o mesmo sigilo e discrição sobre uma sessão de leitura como o que gostaria que o leitor tivesse com sua história e intimidade. Simples assim. 

Carta do Jeu du Petit Oracle, ca.1795
BnF Bibliothèque Infernale

O leitor é, antes de tudo, uma pessoa passível de erros, se não por incompetência também pelo desejo de ajudar seu cliente, saindo do seu lugar de mero intérprete dos símbolos para um torcedor da causa daquele que confia nos seus talentos interpretativos das linguagens ancestrais. Para os consultores é preciso lembrar que a pessoa que o procura tem também suas debilidades de personalidade e poderá estar dando vazão aos seus padrões desequilibrados de controle, e obsessão por uma outra pessoa escapando de viver sua própria vida. Sem falar na miríade de possibilidades de relacionamentos tóxicos que podem estar por trás dessas incursões “preocupadas” pela vida de parceiros e filhos. De mães narcisistas à cônjuges afetivamente dependentes, abusadores e intimidadores disfarçados em pessoas que sofrem por seus entes amados.

O Propósito

Outro aspecto tão óbvio quanto ignorado é: qual o propósito de se ficar observando a vida de alguém que não está presente? Ou mais ainda, onde isso leva o consulente em seu processo de esclarecimento e crescimento interior? A consulta deve ser sempre focada na pessoa que procura o oráculo, e as revelações feitas sobre seus dilemas e preocupações devem ajudá-la a entender o propósito último desses dilemas para o desenvolvimento da sua personalidade e equilíbrio interior. Quando uma pessoa está muito obcecada em saber sobre filhos, vizinhos, colegas de trabalho, ou vigiar os passos do cônjuge, essa pessoa está com uma clara dificuldade de viver a própria história, e viver de forma fluída as suas relações. Tomada por medos inconscientes de rejeição, fracasso ou abandono, que limitam seu sentimento de satisfação plena. A Tarologia evoluiu muito para ser tratada como um mero observatório da vida alheia. Os Arcanos são, antes de qualquer coisa, um instrumento de investigação dos desafios cotidianos como vetores que apontam para suas fragilidades e condicionamentos dando a possibilidade de autotransformação! É claro que há casos em que isso é legítimo! Querer saber dos negócios do seu par amoroso, o que sempre afeta a ambos, o desempenho de um filho em seu desenvolvimento psicológico ou escolar, a predisposição de um sócio para um negócio que tocam juntos, as articulações de colegas ou de uma equipe nos projetos de trabalho, por exemplo... Tudo isso influencia diretamente a vida daquele que se consulta, sem ser uma intromissão agressiva na privacidade de ninguém! Afinal, é para isso que os oráculos existem. São também um guia para ações estratégicas de investimentos, empreendimentos e ações práticas. Cada consultor, profissional ou não, deverá encontrar seu modo de fazer isso usando do bom senso, e de seus próprios critérios sobre o deseja ou não abordar nas suas sessões de leitura.

Como disse há tarólogos que se especializaram em “marcar” outras pessoas nas suas leituras. Com isso atraem uma clientela que vem com uma lista de perguntas de outros indivíduos para uma consulta que deveria ser particular. O que é, a meu ver, totalmente improdutivo para todos os envolvidos. Quando me perguntam o que costumo fazer eu respondo que tiro uma carta de mensagem para cada pessoa da família, e só! Respondo as questões quando apresentadas do modo que citei no exemplo acima e, é claro, questões de relacionamento amoroso. Desde que não se trate de se espionar um ex, ou de uma obsessiva investigação da privacidade do outro. Isso não é amor, é apego e manipulação!

Cada intérprete do Tarot, e de qualquer outro instrumento oracular, deve criar seu próprio sistema para tratar desta questão, o que será profundamente influenciado pela maneira com que ele mesmo vê o que faz, e quais objetivos estabeleceu para si com seu trabalho. O Tarot é tanto um oráculo para a sondagem do presente e do porvir, como um instrumento para o profundo autoconhecimento, sendo um revelador de programações e condicionamentos inconscientes para a libertação da consciência plena. É também um veículo para a prática da magia, da meditação e do despertar criativo. Qualquer outra aplicação que ignore essa riqueza e profundidade é pura e simplesmente um desperdício!